08 setembro 2007

Diário de um viciado

Antes de começar, quero dizer que este será um relato muito doloroso para mim. Hoje serei ainda mais franca e honesta neste espaço. É um momento difícil, conto com a ajuda dos meus (poucos) leitores. Obrigada.

Não sei dizer quando tudo começou. Talvez seja algo que nasceu comigo. Até certo tempo, eu não percebia que eu estava fazendo algo errado. Por ser natural para mim, eu simplesmente fazia.
Desta forma, quando meu convívio em sociedade tornou-se mais intenso, era sempre a mesma história. Certo compromisso era marcado para 22:00, e às 22:00 eu estava lá. No máximo um desvio de 15 minutos para mais ou para menos. Ainda que eu fosse a única a chegar na hora e que os demais convidados só começassem a aparecer meia hora depois, eu não achava nada estranho. "Foi o trânsito", pensava eu, mesmo que todos tivessem chegado à pé.
Com o passar do tempo e a freqüência maior de eventos, comecei a ter os primeiros sinais de que as coisas não estavam certas. Eu continuava chegando na hora marcada aos locais. Aos poucos, percebi que as pessoas cochichavam e apontavam o dedo em minha direção de forma jocosa. Nas conversas, rotulavam-me com expressões pouco amigáveis, como "a chata que chega sempre na hora" ou insinuavam que eu tinha problemas psicológicos relativos a ansiedade. Quando eu me atrasava mais que os 15 minutos que eu mesma tolerava, as pessoas me felicitavam e eu era quase tratada como uma pessoa normal. Mas bastava um próximo evento para pôr toda a esperança de meus amigos por terra. Eu continuava a ser uma aberração.
Meus amigos mais próximos procuravam me dar apoio para lutar contra este terrível desvio de comportamento. Ajudavam-me a chegar atrasada nos lugares e aturavam minha irritação quando isto acontecia - sintoma típico da abstinência. Os amigos não tão chegados, desobrigados de suportar este constrangimento, afastavam-se cada vez mais da minha convivência e trocavam de calçada quando me viam na rua. "Olha, a louca deve estar indo ser pontual em algum lugar, vou sair do caminho dela, é capaz de ela querer me matar se eu impedi-la", pensavam.
Apesar de ter alguns momentos de recuperação, continuo lutando contra este mal que me aflige. Como acontece com qualquer vício, não apenas o doente, mas todas as pessoas ao redor são afetadas. Por mais que elas me expliquem que 22:00 quer dizer das 23:00 em diante, o cérebro de um P.A. (Pontual Anônimo) tem um comportamento bizarro e exótico, conforme explicarei no exemplo abaixo :

Compromisso : 9 h.
Tempo que levo da minha casa até o local, em média : 20 minutos.
Tempo para imprevistos : 3 a 5 minutos.
Tenho que fazer algo para me preparar para o compromisso? Se sim, quanto tempo leva? : 40 minutos.

Ou seja, por volta de 7:55 h a minha vida passa a girar em torno deste evento.
A mente de uma pessoa normal funciona de maneira completamente distinta. Usando o mesmo caso, a pessoa normal, sabendo que demora 20 minutos em média para chegar ao local marcado, sai de casa por volta de 9:20 h, pois aquele é seu dia de sorte (como sempre) e ela vai conseguir chegar em 5 minutos. Assim, estando lá às 9:25 h, ela estará cumprindo o horário de forma perfeita e não será a primeira a chegar, pois todos sabem que só os losers fazem isto.
Por vezes, pego-me sonhando com um mundo em que marcarei uma consulta médica para às 14:37 e serei atendida no minuto combinado. Alucinações como esta fazem parte da vida de um P.A., assim como o sarro e as humilhações. Mesmo os melhores amigos, que tentam fazer você sair deste lodo maldito, algumas vezes não suportam a inconveniência deste comportamento. É uma vida de culpa, vergonha e medo.
Pelo que pesquisei, o único método com chances reais de sucesso é nascer de novo. Terei algumas fases felizes, no entanto, a vontade de chegar na hora me acompanhará para sempre.
Não é fácil enfrentar o preconceito. Algumas pessoas não entendem que é um instinto mais forte que você. Dizem que sou frouxa, maníaca, que preciso usar alguma medicação. Que preciso fazer um esforço para me salvar. Afinal de contas, qual a dificuldade de saber que foi marcado um encontro às 16:00 e começar a pensar em se arrumar às 17:00? É uma atitude tão corriqueira quanto respirar, não é? Não para um viciado.
Com este desabafo, o que espero de todos é o máximo respeito a esta minha condição. Não pedi para nascer e muito menos para nascer assim. Tenho consciência da minha condição diferenciada e saibam que eu faço das tripas coração para causar o menor constrangimento possível aos meus conhecidos. É uma luta dura, diária, mas tenho fé que um dia poderei seguir minha vida sem traumas, chegando 2 horas depois aos locais com um sorriso de emoção e orgulho na cara.

Obrigada mais uma vez.

Atenção : a dose de ironia deste texto pode causar náuseas e dores de cabeça. Na verdade, por mais que este seja um comportamento aceito e até estimulado pela nossa cultura, na minha modesta opinião, chegar atrasada aos lugares é, e sempre será, uma P... FALTA DE EDUCAÇÃO.

4 comentários:

Semiramis Moreira disse...

Desculpe-me por todas as vezes que lhe fiz esperar... tentarei ser mais pontual...

Alexandre disse...

não se preocupe, vc apenas tem "espírito britânico".. :)

Cristina disse...

Eu tenho o dom de sair de casa "em cima da hora", sempre. Por mais que faça esses cálculos e me programe, me atrapalho. E eu tenho um amigo que chega sempre bem antes do horário, mas ele é ansioso mesmo rs

Unknown disse...

hahahahaha...ó Aline esse ano me atrasei só 15 minutinhos né? rsrsrsrs

hahah mas ainda é confuso ..SBC X Cubatão X Santos X Guarujá ...e detalhe ..ônibus rsrssrsrs

"a dose de ironia deste texto pode causar náuseas e dores de cabeça" ..boa!...não me causou não ..fui lendo e achando engraçado ...daí no final ..veio aquele " aiiii" ela tá brava com as atrasadas

bjão Line

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