Ligue

Maldito frio, maldita chuva! Isso lá é dia para se ir trabalhar?
Assim mesmo eu fui, desbravadora e corajosa, escondida embaixo de vários panos e estampas, parecendo uma pilha de roupas à espera do ferro de passar. E com pernas.
O mau-humor já estava presente quando me dei conta que havia esquecido o telefone celular em casa, em cima da cama, desligado. Deixei a bateria carregando durante a noite, e pela manhã, ele foi esquecido em meio aos comentários malcriados sobre o clima.
É claro que pensei imediatamente que todo o planeta me ligaria naquele dia. Aquela proposta de emprego, aquele amigo distante, o homem da minha vida! Não poderia desperdiçar tantas chances de felicidade.
- Alô, mãe?
- Diga, querida.
- Mãe, esqueci meu celular na cama, desligado.
- Ah, eu vi! Coloquei na estante, senão eu podia derrubá-lo no chão quando fosse arrumar o seu quarto. Você não pode deixar suas coisas assim largadas, filha! E além disso...
- Ok, ok, mãe... ok... MÃE! Poderia ligar o celular pra mim?
- Pra quê?
- Ora, vai que alguém me liga, você pega o recado.
- Não seja boba, menina. Ninguém liga pra você!
Pausa.
- Filha?
- Ok, mãe. Mesmo assim, deixe ligado, por favor...
- Mas...
- POR FAVOR, mãe! Tchau.
Fiquei de bico o resto do dia. Uma coisa é você saber que ninguém te liga. Outra é falarem isso na sua cara. Outra, bem diferente, é a sua mãe dizer isso, na lata!
E é claro, óbvio e ululante, que o “ninguém” nessa história, refere-se sempre a um namoradinho. Ficante, beijante, qualquer coisa do tipo. Ou seja, sua própria mãe fazendo questão de declarar que sua doce filha encalhou.
Não a culpo. Afinal, casais é que ligam um para o outro toda hora, para conversarem com aquelas vozes de desenho animado com gripe : “oi, mô”, “tchau, linda”... Eu não sou casal, ninguém vai me ligar mesmo. Merda.
Chego em casa. Corro para olhar o telefone, ainda desligado. Duas mensagens de ligações perdidas e dois recados de voz.
- Mãe!! Não falei! Ligaram pra mim! Viu só? Quem disse que ninguém me liga??
- Ah, deve ser alguma amiga sua!
Bingo.
- Certo, mãe. E se for? Ela não conta??? Hein? Você queria o quê? Que meus 52 namorados me ligassem todos os dias? Haja orelha!
Pausa.
- Não é isso filha! É que celular é uma praga na nossa vida. Te acham em qualquer lugar, a qualquer hora... não tem mais sossego! Se foi uma amiga sua que ligou, não era assunto urgente, senão tinha dado um jeito de falar com você no trabalho. Pelo menos você não perdeu tempo com bobagens! E quanto aos namorados...
- Sim?
- Veja lá se não vai me arrumar um genro grudento, que vai ficar te perturbando toda hora, hein? Seja esperta, minha filha. Não faça como a filha da Marta, que arrumou um namorado ciumento... olha, é um terror! Liga pra menina direto, no trabalho, no almoço... Eu já falei com a Martinha que isso não vai dar certo, tem que impor limites...
- Mãe?
- Diga, filha.
- Não me espere pra jantar amanhã. Vou encontrar com uns amigos meus.
- Amigos?
- Sim. Um deles deixou o recado no celular.
- Só amigo mesmo??
- Por enquanto sim. Vamos ver quantas ligações eu recebo na semana que vem.