"Uma história que prova que não importa quem matou Taís"
Voltando 10 anos no tempo.
Lara Silvante era uma semi-adolescente, semi-mulher, com os dentes envoltos em ferros e um ar desengonçado. Tratava a escola como um passatempo, visto que sempre era aprovada com folga. Andava com a cabeça baixa pelos corredores agitados, em que meninas falavam alto, meninos mudavam de voz e casais punham os lábios para se conhecer.
Em meio as equações de segundo grau e ao redor das orações subordinadas, seus pensamentos fixavam-se em um moço louro, olhos castanhos bem suaves, do último ano.
Clichês são chatos, mas sempre se confirmam. O moço louro nem sabia da existência de Lara.
Ainda que nunca houvesse troca de palavras, ainda que o primeiro e o último ano fossem planetas de galáxias distintas, ainda que ela nunca tentasse esbarrar seu corpo cheio de livros contra aqueles fios louros, Lara desenhava um relacionamento profundo e íntimo com Geraldo, daqueles que só as semi-adolescentes sabem fazer.
Gastava seu tempo olhando-se no espelho, reagindo às negativas fictícias de Geraldo. Ele a desprezava, a humilhava, e ao esbarrarem, ria-se dela e a deixava para trás recolhendo as páginas bagunçadas.
Depois de tanto sofrimento que lhe causara, era natural que Lara odiasse Geraldo. Levou este ódio consigo ao mudar de cidade, no meio do ano. Nunca mais veria aquela escola tediosa e aquele louro maldito.
Ao dizer adeus aos poucos amigos, olhou na direção de Geraldo. Ele retribuiu o olhar, em sua imaginação. A realidade dizia que Geraldo apanhava pela mão uma outra moça, encaminhando-se a um corredor agitado qualquer.
Lara jurou uma vingança esquecível e foi embora com os olhos secos.
Voltando ao tempo atual.
Quando foram apresentados, Lara sabia de quem se tratava. Jamais teve um só trecho de dúvida escrito na memória.
Seu coração não sacolejou no peito como aos 15 anos. Porém havia o algo mais no ar, aquele pensamento envergonhado, questionando a toda hora : "Será que é a minha vez?".
Geraldo não a reconheceu, pois de fato nunca a conhecera. Para Lara, eram quartos vizinhos, de paredes grudadas, que agora poderiam ter uma porta contígua e se tornar, quem sabe, um só cômodo.
O homem misterioso.
Geraldo era filho único de uma família bem-de-vida. Pelo menos era isto que ele achava. Os olhos suaves e os cabelos louros cor de sol desfaziam qualquer dúvida de que Geraldo e Oscar eram irmãos.
Filho de um relacionamento fortuito do pai, Oscar foi trazido para a nova casa ainda pequeno. A mãe concedeu ao pai a guarda total e foi viver sua vida, sem nunca mais dar notícia. O plano perfeito era que Oscar e Geraldo acreditassem que eram filhos dos mesmos pais. Com a resignação das esposas que não têm vida fora do casamento, a mãe de Geraldo tudo aceitou.
Geraldo era apenas 11 meses mais velho que Oscar e mal notou-lhe a chegada. No entanto, os problemas entre eles punham-se de pé, engatinhavam e cresciam, à medida em que eles faziam o mesmo.
As brigas eram constantes e inexplicáveis. Não se pareciam em nada com conflitos fraternos. Havia ódio, intolerância, ciúme e crueldade. Pareciam adultos impiedosos em corpinhos de moleques.
Os pais estavam paralisados pelo medo e pela incompreensão. Já haviam experimentado escolas, religiões, terapias. Mas a convivência era cada dia mais extenuante, levando-os a decidir pela separação dos meninos, quando eles completassem 5 anos.
Geraldo ficaria em casa, bem, por ser o filho. Oscar estudaria em um colégio no exterior e voltaria a cada 6 meses. Quando soube, o pequeno Oscar chorou copiosamente, agarrado à perna da mãe. Era o máximo de resistência que poderia impor.
Na véspera da ida de Oscar, Geraldo decidiu que deveria ficar com todos os brinquedos do irmão. Nova briga iniciada, os pais desesperados por recear que algum ferimento impedisse Oscar de partir.
Os ânimos foram acalmados, mas não os de Geraldo.
Furtivamente, foi até a cozinha, subiu em uma cadeira e atingiu o armário das facas.
Na ponta dos pés, entrou no seu quarto, em que o irmão dormia pela última vez. Pouco enxergava.
Ao ver a silhueta de seu irmão na cama, percebeu que havia uma adulto junto dele. Mamãe.
Faca e mamãe são objetos conflitantes. Apavorado, tentou girar nos calcanhares, correr até a cozinha e pôr a faca no seu devido lugar. Não contava em escorregar no tapete junto à cama, não esperava segurar o cabo da faca com tanta força, não compreendeu quando a faca pareceu ter encolhido, não sabia o que era aquele líquido quente em suas mãos.
A faca encolheu-se no peito de mamãe.
Geraldo olhou. Agora percebia. Puxou a mão de seu irmão adormecido e colocou junto ao coração de mamãe. Voltou para a cama e fingiu acordar com o grito abafado de mamãe e com o irmão soluçando.
Sem nada entender, Oscar foi culpado pelo incidente e expulso para sempre da vida daquela família. A mãe de Geraldo sobreviveu, porém nunca mais foi a mesma, devido ao trauma de um filho, mesmo ilegítimo, ter-lhe espetado uma faca no coração.
Tempos depois, chegaram notícias à casa que Oscar havia batido a cabeça em uma brincadeira infantil e teria perdido a razão. Tal qual sua mãe postiça.
Seu pai inventou para a família que Oscar havia morrido e todos assim preferiram crer.
Geraldo pouco se lembra destes tempos, mas volta e meia tem pesadelos com o líquido quente tocando sua pele clara.
Oscar foi adotado por uma família de médicos. Um obstetra e uma pediatra.
O Dr. Londvic foi o feliz portador da notícia que Carmina estava grávida de Geraldo.
Voltando ao tempo atual.
O plano de Oscar era basicamente olho-por-olho, dente-por-dente. E pensar que, ao ver o seu irmão Geraldo apunhalando acidentalmente sua mãe, teve pena dele, achando que ele fosse levar uma bela surra do pai.
Carmina envolvera-se com este monstro. Não poderia permitir que Lara também fosse atraída.
Jurou vingança. Uma vingança inesquecível, madura, forte e que estava ali, em curso, que não tinha dia ou hora para parar. Prestes a atingir um de seus pontos-chaves, na semana seguinte. O julgamento de Lara.
Ou o fim de Geraldo.
2 comentários:
Uma curiosidade que sempre tive em relação aos escritores: você já tem a história toda pronta na "sua cabeça" ou vai inventando à medida que escreve?
No meu caso, invento à medida que escrevo. Basta eu ver/ouvir/falar/ler/sentir algo que eu ache interessante encaixar na história.
O problema é manter a coerência e a conexão entre fatos e personagens.
Às vezes você tem uma idéia, mas não tem como explicá-la de uma maneira convincente. Se arrepende de ter escrito o fato "x" no capítulo anterior, pois ele não permite que a idéia genial que você teve agora possa entrar na história.
Parte pra outra. Até que uma fique do seu agrado.
É um bom desafio :)
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