Não se passaram mais que cinco segundos entre eu contemplar a paisagem pela janela do ônibus até a vista do lado de fora se transformar em pilares de uma ponte. Os gritos das pessoas ao meu redor indicavam o que parecia impossível há poucos instantes: iríamos morrer.
Eram muitos metros de queda. Ganhei mais alguns segundos de vida em que decidi não gritar, apenas fechar os olhos e esperar o espatife do ônibus na estrada de baixo.
Quando reabri os olhos, esperei ver o céu imaginado enquanto viva, com nuvens brancas, raios de sol e Deus de barba branca, mas a realidade daquele momento era uma fila imensa, pessoas com formulários na mão, caras de impaciência e dúvida, guichês que lembravam repartições públicas na terra, exceto pela quantidade – era muitos, a perder de vista.
“Talvez este seja o inferno. Será que furar fila da balsa é pecado grave? E aquela vez que eu ri do meu vizinho que tropeçou na calçada? Aquela piada… não era pra eu gargalhar… Mas o IR eu paguei certinho, só se digitei um valor errado sem querer em 1997. Foi um ano difícil, 97. Ah, minha sogra era chata! Falei mal mesmo…”
- Maria Silva, CPF 123.456.789.99!
Ouvi meu nome chamado em um dos guichês de formato peculiar e, ao me aproximar, percebi que as divisórias e paredes se estendiam até um teto infinito, em tom cinza escuro, que pareciam nuvens em dia de chuva forte. Nada de branco e raio de sol.
Aguardei o atendimento mentalizando os meus pecados, um pouco perdida pois em terra já nem era mais tão religiosa, havia parado na primeira comunhão. No entanto, todos temos as nossas noções de certo e errado, assim preparei minha lista com os erros e uma justificativa plausível para todos, pelo menos na minha assustada opinião.
Não sei de onde, chegou minha atendente: uma senhora de cabelos prateados e sorriso reconfortante, com leves marcas do tempo no rosto, cada uma delas gritando sabedoria. Olhei de relance para o lado. Todas as atendentes eram a mesma senhora.
- Maria, boa tarde. Tenho só boas notícias. A primeira é que você morreu. Agora você não entende, mas é uma boa notícia. A outra notícia é que analisamos o seu currículo e você é plenamente capacitada para integrar o nosso time no maravilhoso CÉU !! Onde só os bons e puros de coração vivem a felicidade eterna!!! Bem-vinda!
“Estou no céu, mandei bem!”, pensei. Mas não me dei por satisfeita.
- Senhora… Desculpe, não sei nem como chamá-la.
- Isso não importa, querida. Aqui não precisamos ter nome. Só se você quiser.
- Certo. Então… eu não era das melhores pessoas lá embaixo (embaixo? em cima? onde?). Quer dizer, eu tentava ser uma boa pessoa, mas falhava muito também. Nunca matei ninguém, não roubei, mas senti inveja, falei mal, fechei os olhos para algumas coisas… enfim, posso saber por que estou plenamente capacitada para ficar aqui?
- Ai, querida! Olhe para trás!
De repente, se materializaram centenas, milhares de guichês parecidos com os de tom cinza, mas estes eram meio amarelados, meio alaranjados, brilhantes e quase impossíveis de se olhar diretamente por mais que uns segundos. As filas faziam caracóis sem fim, em uma extensão que minha noção de espaço terreno não conseguia compreender.
- Ali é a fila do lado mau. O inferno, sabe? Vocês chamam assim lá embaixo – sim, estamos em cima.
Claro! Está explicado porque vim parar no lado bom. A concorrência! Tinha muita gente idiota no mundo, eu já havia reparado. Sobrou um lugarzinho no céu pra mim, que ainda fiz um esforço e tentei ser boa pessoa, de vez em quando, sabe?
- Hahahahahaha! Otários!!!! Sou melhor que vocês!!!!
Sumi. A senhora sumiu. Fui para a escuridão novamente, pisquei os olhos várias vezes até a visão voltar.
Ouvi uma voz ao longe gritar:
“Maria Silva reprovada no teste. PRÓXIMO!”
Apareci diante de um guichê alaranjado.